A Luz

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EPISÓDIO IV – A LUZ

(excerto)

Alexandre Honrado: O pintor vai defrontar-se com a tela branca. E a tela branca permite-lhe todos os preenchimentos de luzes e até de omissões da própria luz. Aquilo que o pintor faz é um combate com a luz? Ou é uma revelação que vai ocorrendo e que vai extraindo da tela para iluminar-nos a nós, que vemos a tela?

Carlos Dugos: (CD): Há sempre um combate, não em relação à luz propriamente dita, mas em relação à subjugação dos materiais, da própria matéria. A pintura repete um processo alquímico fundamental, o “Solve et Coagula”. Nós quando pintamos, idealizamos a tinta, que deixa de ser simples matéria bruta para passar a ser uma ideia e ao mesmo tempo materializamos a ideia. Esses dois aspectos dão-se num único movimento. Mas o que julgo se trata essencialmente na pintura é das gradações da luz através da cor. Relativamente à luz e à cor eu sigo um conceituado que é Goethiano. O que ele nos explica e até se pode verificar, é que a cor não é mais do que o diálogo ou a dialéctica entre a luz e as trevas. Ele até explica que há duas cores fundamentais, que são o azul e o vermelho. Os azuis correspondem às trevas, são uma família de trevas e o vermelho uma família da luz. Depois há os intermédios. Há o amarelo, que é comum aos dois e o verde que é uma cor central.

Luis de Matos (LM): Nesse caso a luz é sempre facturante entre as trevas e a ausência de trevas?

CD: Sem trevas não há luz. Porque se houver só luz, não se vê absolutamente nada.

LM: A luz em toda a sua intensidade também é invisível.

CD: É. Completamente. Tanto quanto as trevas.

LM: Precisamente. Portanto não é possível contemplar a luz directamente. Pelo menos a luz essencial.

CD: Não é possível apercebermo-nos de nada se tivermos só luz.

LM: Sim, porque não há formas. Não há onde ela reflicta.

AH: Faz lembrar o Ícaro, que quer encarar o sol de frente e acaba por morrer dele.

(…)

CD: O Goethe explicava que a luz quando é vista através das trevas a expressão é vermelha. E é verdade. Ao fim do dia, quando há trevas a oriente, a ocidente onde o sol se põe tudo é vermelho. Quando as trevas são vistas através da luz é o azul que impera. Nós temos o negrume absoluto do espaço, mas como temos uma atmosfera iluminada, vemos o céu azul, embora ele seja negro. Isso é muito interessante para compreendermos o comportamento de cada uma destas famílias de cores. A própria cor, pelo menos para mim, os próprios materiais, as tintas, os pincéis começam a ser entidades quase como se fossem pessoas. São personagens.

LM: Personagens?

CD: Sim.  Eu já prevejo o comportamento delas. Sei o que é que sai dali, se posso juntar isto com aquilo sem haver zaragata… É muito engraçado esse lidar com uma série de personagens que vivem no meu atlier.

AH: Um pouco da família do pintor também está ali à volta?

CD: Sim, sim.

AH: Posso fazer uma pergunta ao Carlos, porque eu tenho aqui alguma curiosidade acerca da simbólica? Há um momento na simbólica em que não é trevas nem é luz, que é o prolongamento do próprio homem, dos seres todos iluminados, seres imateriais até e inorgânicos, se quisermos, que é a sombra. A sombra tem aqui um momento de charneira, de passagem. Tanto que falámos há pouco dos gregos e os gregos tinham um inferno com as sombras, não exactamente com as trevas. Depois as trevas aparecem noutra grandiosidade. As sombras são muito importantes neste seu trabalho?

CD: Sim. Claro, claro. A questão da sombra é que a sombra necessita de um grande equilíbrio. A sombra tem que ser suficientemente equilibrada para para o discurso… É difícil explicar… [Equilibrada] para haver harmonia no discurso, porque senão deixa de ser sombra, passa a ser só escuro.

LM: Como a pausa na música? Será idêntico?

AH: É essa a própria simbólica. A sombra pode passar a escuro se deixar de ser iluminada. Se deixar de ser o homem no seu prolongamento.

CD: Sim… Isso aí é muito complicado. A questão da sombra, das pessoas e dos animais, a sombra que projectam é muito usada na magia operativa, sobretudo na magia negra e africana. A sombra da pessoa é muito importante. A manipulação da sombra da pessoa corresponderia, teoricamente – não sei se na prática – a efeitos na própria pessoa cuja sombra é manipulada. Essa percepção de que a sombra é um outro “eu”, que é a projecção do eu que cria uma intecepção à luz, é muito interessante.

(continua…)

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