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O Rio
Verdadeiro cordão umbilical que liga ao centro da Terra, o Rio sempre foi a FONS VITAE dos povos desde a antiguidade. Assim como o Ganges e o Indo moldaram a Índia no plano corporal e espiritual, assim como a grande Mesopotâmia floresceu entre o Tigre e o Eufrates e como o Nilo imprimiu ritmos e vigor ao Egipto e à sua misteriosa civilização, assim também o Douro, o Tejo, o Guadiana e seus afluentes definiram o Portucalem desde sempre. Desde tempos tão afastados como aqueles em que antigas gentes desenhavam os seus totens nas fragas das margens do Côa e em grutas de Vilarinho, a que o povo chama as Fragas do Diabo junto ao ribeiro, onde velhos pastores se abrigavam das intempéries “desde o tempo em que os animais falavam”, como poeticamente o Transmontano chama à mais remota antiguidade.
Os grandes caudais aquíferos do Douro e Tejo partem o país em três regiões bem distintas. Separam, ainda que a Alma seja comum. O Guadiana traça a fronteira entre o Oriente e o Ocidente. O corpo da terra mãe dos Lusitanos de muitas idades (e de muitas Idades) habituou-se a viver entre estes limites, amando-os profundamente como só um filho pode amar a sua mãe. O Alentejano pode viver em Lisboa, mas o seu coração bate à cadência do dourado ondular das searas e do ruminar dos bezerros travessos. O Transmontano passa a sua existência em Coimbra, no Porto ou na “estranja” – onde a profissão o levou – como um exilado, em solitário degredo de obstinada nostalgia dos tempos de menino, dos caminhos de terra batida, do som dos cascos de cavalos nos paralelepípedos húmidos da noite de orvalho, do cheiro da chuva na terra seca naquelas terdes quentes de Julho, a fugir das avós, sempre de aventais de linho estampados a azul e renda imaculada – eternas Gatas Borralheiras do solo pátrio. São ambos a expressão genuína da Saudade. A água das memórias primordiais que correm nas veias do planeta, como nos vales profundos de cada ser humano, da montanha ao mar, da alva neve à negra voragem abissal. Espelho das almas.
Os Rios ocupam lugares centrais em muitas religiões e tradições mitológicas. Wagner cantou o Reno como Camões cantou as suas Tágides. O Rig-Veda estabelece a sacralidade do Ganges como Jesus sagra o Jordão ao ser nele baptizado. Os rios ajudam a compreender a “corrente” da vida. Já lá diz o povo: “são águas passadas”, atestando a mesma imagem. O paralelismo entre a vida de cada um e o fluxo das vidas colectivas nas colectividades em que vivemos – seja a família, a aldeia ou cidade em que vivemos, a mesma nação ou todo o planeta – tem sido traçado por místicos desde a antiguidade. Os Martinistas chamam a esse homem adormecido, que se deixa arrastar pelas paixões e afundar pelos vícios o “Homem da Corrente”. E trata-se de uma imagem simples, não obstante poderosa.
Passar o rio interior para a margem de lá (do consciente para o super-consciente, ou seja da vida física comum para a vida metafísica), é associado na tradição à construção de uma ponte. Aquele que o logra, que na linguagem do Oriente, é capaz de formar um Antakarana e passá-lo, é um construtor de pontes, ou um Pontífice (Ponte+fecit). Um verdadeiro Hermes realizado. Para lá das águas do Rio (cujas águas prefiguram a memória ancestral), está a morte física, mas o renascimento espiritual.
Resta deixar a recordação de uma antiga lenda, ligada a outro Rio português, relato que inspirou, entre outros, Almada Negreiros. A cidade da Ponte de Lima é lugar de travessia medieval de grande importância, ponto de passagem obrigatório no Caminho de Santiago português. Nas suas margens muitas das famílias originais da Portugalidade assentaram e muitos solares e elaborados brasões ainda hoje olham altivamente o forasteiro. Mas houve um tempo em que não havia ponte. Quem passava o rio de barco, fazia-o com o risco da própria vida. Dizia-se que não regressava. Nessa época o rio chamava-se Letes. Afirmavam os antigos que quem o passasse perderia de imediato a memória ao chegar à outra margem. O simbolismo é aqui perfeitamente canónico. Não só a passagem do rio representava o enfrentar dos medos ancestrais (e logo do Plano Astral), como o bom termo da tarefa estava ensombrado pela perda da memória (o enredar do caminho no labirinto Mental). Diz-se que a lenda foi vencida durante as campanhas Romanas. Citemos o próprio Almada Negreiros: “Comandadas por Decius Junius Brutus, as hostes romanas atingiram a margem esquerda do Lima no ano de 135 a.C. A beleza do lugar fez julgarem-se perante o lendário rio Letes [referido por Estrabão], que apagava todas as lembranças da memória de quem o atravessasse. Os soldados negaram-se a atravessá-lo. Então, empunhando o estandarte das águias de Roma, o comandante chamou da outra margem a cada soldado pelo seu nome. Assim lhes provou não ser esse o rio do esquecimento.”
O Rio que nos ocupará neste “Traçado” será o Douro. Iremos concentrar-nos em alguns tramos apenas, por manifesta falta de espaço e tempo numa conferência como esta. Faremos um pequeno périplo por alguns lugares e recordaremos histórias e mitos a seu propósito. A corrente do Rio faz reluzir miríades de agulhas douradas quando é batida pelo sol da tarde serena. Façamo-nos ao Rio. Façamo-nos ao Mito.
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Os Mitos e os Ritos
Ao longo da descida do Douro, da nascente até à foz, serão abordados alguns dos mais persistentes e misteriosos mitos relacionados com os lugares Rio abaixo. Entre eles, contam-se:
O Arcanos da História, recordando alguns dos Arcanos Maiores que podemos encontrar ao longo da história de Portugal;
O Mito de Io e os Gémeos;
A Ordem Secreta de Porugal (Ordem de Mz) e as Famílias que a implementaram no terreno, preparando a independência e mais tarde as Descobertas;
Traços visíveis da Ordem de Mz desde muito cedo;
Os Templários em Trás-os-Montes e a linha de defesa de fronteira;
A velha questão do nascimento de Afonso Henriques;
Ansiães e São Lourenço;
Os Caretos transmontanos, suas origens, ritos e repercussões;
Sé Catedral do Porto – O Bispo Iniciado.
Este trabalho procura ser um ponto de partida e não uma tese explicativa de uma realidade oculta. Trata-se tão somente de, aproveitando a influência que o Douro exerce nos povos da sua bacia hidrográfica, fazer um itinerário onde se coligem lendas, histórias, mitos, ritos e peças etnográficas que nos ajudam a conceber uma ideia porventura mais ampla dos homens, da história e dos seus motores.
Luís de Matos, Lua Cheia de Gémeos de 2010
[Texto que resume os assuntos abordados na Conferência de dia 22 de Maio na Comunidade Portuguesa de Eubiose]