A Propósito da Morte da Vergonha (II)

Esta 6ª feira jantei com amigos e amigas de várias procedências maçónicas. O JZ trazia consigo um livro admirável: “100 anos de História” de Emídio Guerreiro.

Emídio Guerreiro, incontornável personalidade das Matemáticas Portuguesas e da Política, pela sua inabalável oposição à ditadura, mais tarde Deputado no Parlamento Português, era um respeitadíssimo Maçon do Grande Oriente Lusitano. Conheceu, como ele dizia, 3 séculos: o 19 (nasceu em 1899), o 20 e o 21 (passou ao Eterno Oriente em 2005). Uma vida de guerreiro, de defensor da justiça e da liberdade, passou pela a prisão política ao tempo do Estado Novo (1932) tendo fugido do Aljube e transitado clandestinamente para Espanha onde acabou por ser preso pelas tropas de Franco em Vigo em 1936, destinado a enfrentar a morte por fuzilamento. A sua vida é salva pelo Consul da Inglaterra em Vigo, Mr. Huxley em circunstâncias que nos interessam. Guerreiro fez-lhe um “sinal especial” e o Inglês, que era Maçon como Emídio, abriu-lhe o caminho da liberdade e do exílio – livre – embarcando-o às escondidas num navio de guerra Inglês que estava no porto de Vigo e se dirigia a Gibraltar e depois França (ver o vídeo notável abaixo). Ali ficaria até 1974 quando regressou a Portugal.

Recordo este homem ímpar e o vídeo do Arquivo da RTP porque ele mesmo fala do silêncio criminoso das nações europeias durante a Guerra Civil Espanhola, enquanto os fascismos cresciam e se enraizavam pouco tempo antes de mergulharem todo o Velho Continente no genocídio da II Guerra. O tema das minhas reflexões “A Propósito da Morte da Vergonha” entronca aqui. No já referido silêncio dos inocentes, a complacência dos que passivamente olham e não se envolvem quando o desprezo pela liberdade e pelas regras são flagrantes, mas não tanto que nos incomode de perto.

Emídio Guerreiro não foi o único Maçon salvo por ter feito “o sinal” e ser reconhecido. Há casos documentados na Guerra Civil Americana de irmãos de facções contrárias que, vendo-se em aflição, se valeram uns do outros e se salvaram juntos. Inimigos na guerra, mas irmãos até ao fim. O próprio Consul da Inglaterra em Vigo colocou o seu lugar em risco, senão mesmo a sua pessoa, ao ajudar o Maçon foragido Emídio, que reconheceu pelo “sinal” e cuja confiança não pôde trair.

Sobre isto falávamos no jantar. Sobre esta admirável fraternidade que ultrapassa linhas inimigas, antagonistas inconciliáveis, a sede pelos éditos que visam eliminar a voz dissonante. A supressão do outro como única condição de sobrevivência. A Maçonaria como a instituição capaz de resolver o “ou estás com eles ou estás comigo, porque se não estás comigo, estás contra mim”. Emídio não estava com o Consul Inglês, até porque pertencia a uma Obediência laica, que a deste não reconhecia. Mas a fraternidade supera todas as dificuldades e todos os pretextos. Emídio sabe que sobreviveu ao pelotão de fuzilamento porque “deu o sinal”. Sobre isto falávamos no jantar.

Foi então que alguém à mesa disse tudo: “Isso eram Maçons de outros tempos, meu caro. Tinham valores. Hoje ‘fuzila-se’ o irmão da própria Loja e ninguém protesta.”

Fez-se um silêncio pesado.

Um silêncio de inocentes.