Há uns quantos anos o Nuno da Câmara Pereira convidou-me a dar-lhe uma ajuda na Ordem de São Miguel da Ala, de que era Comendador-Mor, porque havia que reabilitar o Colégio do Menino Jesus em Carnide, uma instituição de solidariedade social apadrinhada pela Ordem há muitas décadas, que tinha caído no descrédito junto às autoridades de tutela, estando em vias de fechar, sem alunos, sem dinheiro e com funcionários com salários em atraso.
Maus anos de gestão, más decisões, pouca atenção ao propósito real (Real diria..) de uma Ordem com as características da Ala, muita mágoa, levavam então o Nuno a retomar com muita paixão a liderança da Ordem depois de se ter afastado na maré de uma carreira musical intensa. O seu regresso era crucial, contando com a totalidade dos fundadores originais da Ordem ainda vivos, da qual tinha sido um ele mesmo, ainda um jovem desconhecido do mundo do espectáculo, no dia longínquo em que assinara a escritura, entre pares, entre augustos valentes com um propósito.
Associei-me com gosto. Relembro a cerimónia na Igreja de São Miguel, junto ao Castelo em Lisboa. Como poderia esquecer? Seguiram-se meses de luta pelo legado, em perigo, colégio, ASA e tudo. De um momento para o outro os sinais da Ordem caíam na rua, apareciam como adesivos colados em faiança, disfarçados de verdadeiros não eram reais, como num jogo de espelhos havia Alas de São Miguel desde Sagres até Bragança… Havia que por ordem (diria “por Ordem”) na fancaria como se punha já no colégio. Em pouco tempo o colégio já não precisava de fechar. Devido às muitas horas de dedicação de muitos, deu-se a reviravolta. Limparam-se contas, motivou-se a equipa, enfrentaram-se os problemas, criaram-se soluções, planeou-se e executou-se com as crianças e as famílias em mente. Hoje o resultado é pouco menos que prodigioso. Abrem-se as portas sem vergonha.
Em paralelo apareceram algumas polémicas. A Ordem, relutantemente, viu-se forçada a recorrer à justiça. É que, enquanto no colégio se reparava o estrago com trabalho e suor, foi necessário fazer prevalecer a verdade acima da ambição e da fantasia com recurso a instâncias oficias. Desde muito cedo que a media apanhou o fio do que viria a ser um longo processo. Instância sobre instância, em serena cadência que caracteriza os que confiam na indiscutível vitória da verdade, a Ordem foi vendo a sua identidade reforçada e o seu direito defendido por sentenças sistemáticas a seu favor. A atribuição de indemnizações e a execução de penhoras a quem havia ultrapassado as fronteiras da lei só se deu em consequência de uma teimosia mal informada e da noção incorrecta de que a lei poderia, de algum modo, proteger uns em face de outros pelo simples facto de serem qualquer outra coisa que não homens comuns e todos por igual sujeitos à mesma lei. É meu desejo que o futuro seja de paz e com menos títulos de jornal, agora que tudo é bem claro.
O saldo que faço destes anos de trabalho com os meus confrades é positivo. Vale a pena acreditar quando se tem a lucidez e a razão, quando a elas se adiciona a Fé e se labora na obra humana, colectiva e disciplinada de uma Ordem. Muitos há que preferem ser o resultado do passado a ser a causa do futuro. Por isso vamos ao futuro que se faz tarde.
BELMONTE
Escrevo sobre a Ordem de São Miguel da Ala porque, em todos estes anos em que aqui vou publicando, poucas vezes lhe fiz referência.
Ora, dá-se o caso de que no passado dia 7 de Maio tive o prazer de ver dois distintos amigos brasileiros serem armados Cavaleiro e Dama de Ordem numa cerimónia em Belmonte. Tratou-se de Alexandre e Chaia Figueiredo, advogados do Rio de Janeiro, residentes no nosso país desde o ano passado.
Porquê o dia 7 de Maio?
A Ordem de São Miguel tem uma fundação mítica justificada pela lenda da conquista de Santarém. Naquela tarde de Março de 1147 conta-se que as nuvens ao sol poente desenhavam uma grande asa colorida nos céus, de ocidente para oriente. Este efeito, como um mau agoiro, atemorizou a guarnição moura que defendia a fortaleza da cidade que, em vão, vigiava as planícies infindas às sua frente a sul. Não seria dessa direcção que a sua segurança seria ameaçada.
Já noite escura pouco mais de duas dezenas de soldados liderados por Afonso Henriques, chegados pelo norte, dominaram os vigias e sentinelas, entrando no castelo e surpreendendo a guarda. Santarém caiu definitivamente em mãos cristãs. A Asa no céu não foi esquecida. Corria a voz que, durante as escaramuças, havia quem tivesse visto a mão de Afonso Henriques coberta por uma mão luminosa e alada, que, dizia-se, só podia ser do Arcanjo seu protector. A lenda termina com o agradecimento de Dom Afonso, decidindo conferir a alguns dos seus mais privados a Ordem de São Miguel da Ala no São Miguel de Maio, a dia 8.
A história não tem documentos que possam suportar a lenda. Sabe-se no entanto que a Ordem teve a sua presença, ainda que diminuta – e talvez por isso, constituída por particular escol – na história, sendo ocasionalmente referenciada como tributária da Ordem de Cister. Já no século XIX D. Miguel terá constituído um grupo nela inspirado, com características quasi maçónicas e imbuída de total secretismo, cujos objectivos puramente políticos a afastam da tradição mais antiga. Essa tradição antiga é a que São Miguel da Ala de hoje retoma.
Porquê Belmonte?
Belmonte está indissocialvelmente ligada à família dos Cabrais. Pedro Álvares Cabral foi o achador do Brasil. Tal como muitos dos Almirantes da época das Descobertas, a sua origem não era próxima do mar. São exemplos Pêro da Covilhã, Antão Gonçalves (Oliveira do Hospital), Diogo Cão (Monção), Afonso de Paiva (Castelo Branco), Bartolomeu Dias (Mirandela), Nicolau Coelho (Vale do Sousa), etc. A ligação de Belmonte a Cabral e do legado desta família a São Miguel da Ala é mais do que simplesmente simbólica. Bastará recordar o papel que o Brasil representa em toda a nossa história, até aos dias de hoje. De como a língua e a cultura de ambas as nações as irmanam. Basta consultar a obra e biografia de Vieira, Anchieta, Pessoa ou Agostinho da Silva para sublinhar a origem e destino comum do Portugal e Brasil. Belmonte é, assim, um lugar que simboliza de modo muito visível a unidade espiritual que entrelaça os dois lados do Atlântico.
Acresce que o Comendador-Mor da Ordem, o Nuno, se chama de facto Nuno Cabral da Câmara Pereira e que esse Cabral lhe chega por via directa, como descendente do pretérito Pedro. Isso mesmo teve oportunidade de sublinhar, com bastante mais detalhe que aqui não cabe, durante a cerimónia oficial de abertura do dia de São Miguel em Belmonte.
Finalmente, a Ordem e Belmonte reforçam a sua estreita relação com a celebração de um acordo histórico que se resume em poucas palavras: por iniciativa conjunta, a sede oficial da Ordem será o Castelo de Belmonte, atribuição confirmada e anunciada pelo Presidente do Município, António Rocha, entusiástico anfitrião das celebrações. A ele se deve a vontade expressa por muitos dos visitantes em regressar para melhor desfrutar da paisagem, património e gastronomia da região, que superou as expectativas dos que não a conheciam. E eram muitos.
Para estas cerimónias fizeram-se presentes Irmãos de várias Ordens de Cavalaria, destacando-se o Duque de Maqueda, Grande de Espanha, com uma numerosa delegação, bem como muitos Irmãos de França, Espanha, Itália e Brasil. A festa incluiu a visita ao magnífico Museu (interactivo) das Descobertas, ao Castelo de Belmonte, ao Cellium, bem como um desfile da Cavalaria pelas ruas principais em direcção à igreja onde, de portas abertas à população, teve lugar a cerimónia de armação de novos Cavaleiros e Damas e a tradicional missa. Nem a chuva persistente e os ventos fortes detiveram os Cavaleiros. Dizia um visitante: “chuva civil não molha militares”! E lá foram ao castelo!
As poucas fotos que pude tirar não ilustram com justiça os procedimentos do dia. Tentarei por isso complementá-las com um curto texto.
A CERIMÓNIA
A cerimónia começou com o desfile de Cavaleiros e Damas pelas ruas de Belmonte precedidos pela banda filarmónica, em marcha firme, terminando no adro da igreja, lugar onde se dá a entrada ordenada e em modo militar na igreja. Os dignitários ocupam os seus lugares. SAR Dom Pedro de Loulé preside, sentado à esquerda. Junto ao altar está o Capelão, Padre Delmar e dois sacerdotes espanhóis que acompanham os visitantes. Os Oficiais da ordem estão nas primeiras filas, dirigidos pelo Comendador-Mor e Marquês de Castelo Rodrigo, Nuno da Câmara Pereira. Atrás, em várias linhas de assentos, todos os Irmãos e Irmãs nos seus mantos brancos. Ainda mais atrás o grupo de postulantes que serão armados de seguida. A igreja está cheia, mas ainda tem espaço para um conjunto muito grande de habitantes de Belmonte, que seguem cada momento da cerimónia com grande interesse, muitos de telemóvel na mão a fotografar.
O Reverendo Cavaleiro Pinto Coelho aproxima-se do ambão e inicia a Exortação à Cavalaria. Explica em palavras certeiras, numa voz de comando pausada e bem colocada, o que é a Cavalaria e o que se espera de cada um dos postulantes uma vez assumidos os compromissos de São Miguel. Recorda-se a nossa história, fala-se do fundador mítico, Afonso Henriques e dos feitos de Santarém. Sublinha-se o serviço e a causa.
O Kyrie e o Gloria in Excelsis são cantados por uma intérprete de assinaláveis dotes vocais, acompanhada ao piano e violino.
Os postulantes aproximam-se do altar. A espada é benzida e preparada para a sua função sacra. Ajoelham-se postulantes um a um diante da dupla autoridade representada pelo Comendador-Mor (em nome do Ordem) e do Capelão-Mor (a Igreja). Em posição de súplica ouvem as palavras de ambos. A espada, pesada, reluzente, ergue-se ao céu imponente. É o momento. O postulante baixa a cabeça e o Comendador-Mor consagra o Cavaleiro. O Capelão-Mor, pela bênção, sela o laço fechado. Ajoelhou-se postulante, mas levanta-se Cavaleiro, inteiro, vertical, coberto pelo manto alvo e puro, uniforme entre todos os companheiros da Cavalaria, capa de protecção e sinal de confraternidade.
Segue-se a celebração da missa. A igreja, até ali cheia de olhares curiosos, diferenciada entre os Cavaleiros e os crentes que os observam, transforma-se. Com o Capelão-Mor, concelebrando com os outros sacerdotes, a igreja converte-se na sala de visitas de Deus. Passa a ser um lugar onde todos celebram em festa a Fé que lhes é comum. Já não há distinções. Todos são parte da mesma comunidade que deseja celebrar a Eucaristia.
A Ordem de São Miguel da Ala tem sentido a Asa protectora em muitos momentos. Mas é nas inspiradas homilias do Padre Delmar, na sua oratória que ordena palavras e imagens vivas sem esforço, que toda a cintilante luz do Arcanjo se vai espargindo pelos presentes. Desta vez quis-nos deliciar com uma breve exposição sobre a Palavra como Espada, recordando São Paulo. Sem esforço, foi acompanhado por uma atenta audiência, cativa de cada uma das suas palavras. Como uma delícia breve e que pede por mais, o momento pareceu rápido. Passou à liturgia eucarística e à comunhão.
A cerimónia terminou de forma emotiva com uma oração à Virgem Mãe pelo Nuno, num registo diferente daquele que se lhe conhece do fado, a capella, que fez ressoar cada pedra viva daquela igreja.
Seguiu-se a ceia de gala, degustação muito apreciada das especialidades da região. Num ápice era hora de regressar a casa. Ficou o agradecimento ao novo amigo António Rocha, Presidente da Câmara, a SAR Dom Pedro de Loulé, que nos agraciou com a sua imprescindível presença, ao Capelão-Mor Padre Delmar que é sempre um exemplo excelso e inspirador, a todos os Cavaleiros e Damas da Ordem que trabalharam de forma árdua para que tudo corresse de maneira digna e no cumprimento e estrita observância da Tradição e sobretudo ao Comendador-Mor, Nuno da Câmara Pereira que, em tão inspirada hora, há tantos anos, me convidou a partilhar da sua árdua tarefa e como, com o seu entusiasmo, o seu alento e a sua liderança, leves se fizeram os fardos que aqui nos trouxeram. Obrigado Nuno.
Fica para último a referência a três amigos que saíram de Lisboa como Postulantes e voltara como confrades. Alexandre e Chaia, que escolheram o meu país para morar, tomem esta cerimónia como um sinal das boas-vindas. Ao Fernando Coelho, providencial ajuda para que se proporcionasse a minha presença em Belmonte, um grande abraço de instantânea amizade. Fomos desconhecidos um do outro. Voltámos Irmãos. É isto a Cavalaria, não é Fernando?