Pérolas aos Poucos – Crise? Que Crise?

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TEMPORADA 2 – EPISÓDIO VI – CRISE? QUE CRISE?

Já não estamos (ou ainda não estamos) numa crise. A crise é o momento da mudança, em que o paciente morre ou começa o caminho para a recuperação. É curta por definição. É a diferença entre “Houston, we have a problem” [“Houston, temos um problema”] e “Houston, WE ARE a problem” [“Houston, SOMOS um problema”].

Vivemos uma Crise, ou estamos só a distender uma situação?

Pérolas aos Poucos – Chama-me Nomes

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TEMPORADA 2 – EPISÓDIO V – CHAMA-ME NOMES

(excerto)

Luis de Matos (LM): Um outro fenómeno que tem acontecido em diversos países, mas que é mais visível nos nomes americanos e na comunidade afro-americana, é procurar inventar nomes muito criativos e muito diferentes [do habitual]. Lembro-me de Beyoncée, Jamilia, por exemplo. Quando ouvimos alguns nomes na televisão ficamos muito surpreendidos. São nomes especificamente da comunidade negra. E porquê? Porque os seus pais e avós tinham nomes de escravo e eles estão a procurar deixar [para trás] esses nomes. Os Jackson, os Jefferson eram nomes normais da comunidade negra há 50 ou 60 anos atrás. Cada vez mais os vão deixando para outros nomes que vão criando. São muito inventivos. E isto é interessante porque a sua consciência social mudou completamente. Eles não renegam a sua ancestralidade, aquilo que os seus pais ou avós foram, mas como se sentem pessoas diferentes e têm outro papel na sociedade, mudam o nome. No nome se reflecte a mudança interior.

Alexandre Honrado (AH): O papel da religião [na atribuição de nome] também é importante. Há uma fase da história do mundo que é condicionada por algumas religiões e essas religiões impõem alguns nomes, até para as pessoas poderem dizer “eu sou desta religião”, ou também para dizer “eu agora escolhi um nome diferente para o meu filho para esconder que sou desta religião”, depende do momento que estás a viver.

LM: Sim.

AH: Em Portugal é nítida a quantidade de José e de Maria, o que não é em vão e que em certas zonas do mundo [essa influência ainda] é importante.

LM: É um impacto importante. Mas é mais importante, por exemplo, o nome de família. Enquanto que, com o nome – quando dizes o nome próprio – de facto esse nome define-te como pessoa, o teu apelido define ainda mais, porque fala sobre o teu passado. Conforme eu te dou um nome… Tu disseste-me logo: “Matos? Está ligado a judeus.” Não poderias saber, por exemplo, que o meu avô se chamava Isaac.

AH: Não podia saber…

LM: Claramente que isso se reflecte.

AH: Podia deitar-me a adivinhar, o que era uma coisa linda!

LM: Podias tentar!

(…continua)

Pérolas aos Poucos – O Objecto

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Temporada 2 – Episódio III – O Objecto

(excerto)

Luis de Matos (LM): [A noção de objecto] que vem do filósofo George Berkley, leva ao extremo a ideia de que o objecto em si é indissociável da ideia do objecto. Quando falamos do [Santo] Graal e dizemos que está em Léon; ou não, está em Glastonburry; ou não, está em Monserrate; ou não, está em Valência, ou noutra parte qualquer da Europa; ou até poderia estar em Portugal, quem sabe; nós estamos a falar de ideias do Graal. Estamos a falar daquilo que são as tais formas de pensamento que criamos à volta de um objecto específico. O que George Berkley defende é que o objecto e a ideia são uma única coisa, não são coisas distintas. Não consegues ter a ideia sobre o objecto sem a existência do objecto.

Alexandre Honrado (AH): Estás perante o objecto. Tens consciência dele e o reconhecimento do objecto.

LM: Se não estivesses perante ele e não tivesses a percepção empírica de que ele está à tua frente, não conseguias conceber o objecto. Sem um motivador externo, não conseguias criar a ideia. A partir desse momento, o objecto e a ideia tornaram-se iguais. [O objecto é a ideia que fazes dele e deixa de existir por si mesmo].

AH: Estavas cá no início do programa, quando eu disse para a câmara – logo no início – “sem o objecto não podemos ser objectivos”. Uma sala vazia, nua, sem qualquer objecto, não nos trás objectividade. Perante esse reconhecimento não somos nada.

LM: Não. Contudo, tu podes criar a ideia do objecto – “o Santo Graal é uma taça”, dizes tu – e agora a ideia em si ganha vida. Mesmo sendo distinta do objecto. Ela passa a ser em si [mesma] algo que é, que posso comunicar às pessoas, que posso fazer crescer, que posso colorir à volta e criar toda uma “ideologia” à volta [da ideia] de algo que [já não] é sequer objectivo.

AH: É mais uma imagética, às vezes, nem é propriamente uma ideologia.

LM: Completamente. Isto faz com que o objecto tenha evoluído. Quando perguntas “o Graal não seria uma taça”? [Sim,] é uma taça. Na ideia das pessoas é uma taça. Portanto, é também uma taça.

AH: Em alguns textos mais antigos dizem que é um prato de cobre. Que na tradução mais directa…

LM: Pelo que, também é um prato.

AH: Pelo que também é um prato…

LM: Ou seja, se o objecto e a ideia que tens do objecto são a mesma coisa, cada objecto vai adquirindo sucessivamente diversas formas ideais [a partir] daquilo que ele é, que o vão qualificando e o vão transmutando ao longo do tempo. O objecto muda ao longo do tempo.

AH: Exactamente.

LM: Havia um objecto específico e físico, que pudesses tocar, que fosse o Graal? Isso é o que nós não sabemos. Porque a ideia já adquiriu tal força entretanto, já se expandiu de tal maneira e já ressoou de tal modo com as pessoas, que lhe atribuíram toda uma série de significações que são muito profundas para elas, que o objecto em si já perdeu a importância.

AH: Mas o significado não deixa de ser aquilo que é o teu imaginário para o tornares no teu imaginário interior. E portanto já não discutes se havia ou não [o objecto original]. Há um Santo Graal qualquer em cada uma das pessoas que acreditam nele.

LM: E por isso tu dizes assim: “o Santo Graal é a perfeição da alma”. Pois. É uma ideia que decorre de uma idealização daquele objecto.

AH: É uma transposição, diríamos.

LM: Completamente. Portanto objectos como o Santo Graal, ou a espada Excalibur, ou, ou … (ri-se), ou por exemplo a Batalha de Ourique e o milagre que se deu quando D. Afonso Henriques viu Jesus Cristo nas nuvens que lhe disse “toma esta chagas para símbolo da tua nação” e [hoje] aqui estão as cinco chagas nas cinco quinas de Portugal, etc.; tudo isso são questões objectivas ou são ideias que depois evoluem? Houve objecto? Houve um Jesus Cristo pregado numa cruz, visto no céu [de Ourique], ou isso foi uma ideia criada a partir de uma impressão que pode ter sido perfeitamente metafísica, ou pode até ter sido ilusória? Mas a ideia em si passou a existir.

AH: Há um Santo Lenho quase em cada igreja. Há milhões de Santos Lenhos, há milhões de objectos…

LM: Se [a ideia] passou a existir e se temos as cinco quinas na nossa bandeira, a ideia passou a ser em si própria o objecto. Não há que discutir se houve Ourique ou não. Agora [a ideia] já teve a sua influência na história. Agora criaste o mito.

(continua…)

 

Pérolas de Segunda Época

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O “Pérolas aos Poucos” voltou à TVL. Começámos a nossa Segunda Temporada com alguma saudade. E alguma nostalgia. De facto, está já disponível o episódio intitulado “Que Saudades da Nostalgia”, onde exploramos o modo com designamos os sentimentos.

Talvez muitos não saibam, mas a nostalgia começou por ser identificada como uma doença melancólica, que atacava os soldados Suíços em serviço fora da sua terra. E só foi designada no século 17!

Já a nossa saudade é anterior e aparece escrita pela primeira vez nas Cantigas de D. Dinis. No programa exploramos um pouco as diferenças entre uma e outra e procuramos entender por que motivo o sentimento resistiu a ser designado, bem como o significado etimológico de ambas as palavras.

Pérolas aos Poucos V – O Segredo

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Episódio V – O Segredo

(excerto)

Luis de Matos (LM): O “segredo” tem aqui duas fases. Em primeiro lugar a noção de que há uma realidade e que algo se esconde por trás dessa realidade. Podemos apreciá-la se pudermos, a partir daquilo que é esotérico – daquilo que não é aparente – chegar a algo de mais profundo, que é a existência das coisas para lá da sua aparência. Mas isso parte de um princípio [anterior] muito interessante: é que elas antes de serem coisas, também já tinham uma existência que era invisível. E todo o visível é produto da precipitação desse invisível. Ou seja, tudo o que é material, já foi imaterial antes de poder ter sido material.

Alexandre Honrado (AH): E aos poucos vai-se descobrindo?

LM: Aos poucos vai-se materializando. Portanto essa essência que o criou está lá. Faz parte do tecido de toda a coisa existente. Estudando a coisa existente, encontram-se as causas da coisa existente. O esoterismo é isso.

AH: Então o mistério é uma metáfora do segredo.

LM: O mistério é uma metáfora do segredo. O mistério está em tudo, podes a partir dele, chegar ao segredo. E o segredo é a causa. O segredo é sempre a causa. Falamos da relação entre a palavra “segredo” e a palavra “arcano”. Alguma coisa que é “arcana”, de facto é um segredo. Mas “arcano” vem do [grego] “arquê”, o “princípio”. É o princípio gerador de todas as coisas.

AH: Utilizamos muito o “arcaico” por causa disso.

LM: Precisamente. A noção de segredo tem sempre que ver com “o que é que causou isto?” Vivemos num mundo de causas e efeitos mas muitas vezes não nos perguntamos, na nossa vida, porque é que qualquer coisa ocorre. Quando paramos e perguntamos o “porquê?”, estamos a indagar qual é que é a causa. É um mundo de efeitos. Se encontrarmos a causa e mudarmos a causa – e muitas vezes a causa é o nosso mau comportamento, muitas vezes a causa é como reagimos mal a determinadas situações, muitas vezes a causa são as nossas inclinações naturais, que nem sempre são as melhores, ou até inclinações culturais que nos obrigam a agir de determinada forma que não é consistente com os valores morais que temos…

AH: E exigências do foro esotérico…

LM: … quantas vezes… o que nos leva a produzir um mundo, a criar um mundo à nossa volta, connosco, com os nossos amigos, com a nossa família, no nosso emprego, que é totalmente condicionado pelas nossas reacções.

AH: Tu acreditas que, para o verdadeiro amigo, não há segredos?

LM: (ri-se).

AH. Nós somos muito amigos, mas teremos alguns segredos um para o outro?

LM: E quem é o verdadeiro amigo?

AH: Quem é o verdadeiro amigo?

LM: Sim, quem é o verdadeiro amigo? O único fiel amigo que há é o bacalhau. Esse é o único fiel amigo. Tirando esse…

AH: A proximidade do Natal faz-te dizer coisas absurdas…

LM: Faz, faz…

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AH: Não sou só eu hoje a dizer coisas absurdas…

LM: É que colocamos o fiel amigo no plano da refeição. Haverá um fiel amigo? Quem é que é fiel a si próprio, quanto mais ao outro, durante toda uma vida? Quantas vezes nos traímos a nós mesmos? É que temos dentro de nós duas tendências: temos sempre a possibilidade de fazer o bem e o mal. Mas enquanto não nos descobrirmos, enquanto não encontrarmos uma bússola interior que indica o caminho que devemos seguir, estamos sempre a mudar. Somos voláteis. Somos aquáticos.

AH: Luz e trevas também.

LM: Completamente. Mas seremos sempre luz e trevas. A questão é que muitas vezes as trevas sobrepõem-se de forma inconsciente. Nós nem o percebemos. E somos inconsistentes connosco próprios. Hoje defendemos uma coisa, daqui por uma semana defendemos outra completamente distinta, achando que somos consistentes.

AH: As respostas às vezes estão dentro de nós e por isso é que estão tão distantes, porque temos segredos para  nós próprios. Não queremos admitir… Chegamos lá, tocamos e voltamos atrás. “Não quero descer tão baixo para conhecer o meu íntimo”.

LM: Precisamente, precisamente. Eu falo por ti.

AH: E eu falo por ti!

(continua…)

Pérolas aos Poucos IV – A Luz

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EPISÓDIO IV – A LUZ

(excerto)

Alexandre Honrado: O pintor vai defrontar-se com a tela branca. E a tela branca permite-lhe todos os preenchimentos de luzes e até de omissões da própria luz. Aquilo que o pintor faz é um combate com a luz? Ou é uma revelação que vai ocorrendo e que vai extraindo da tela para iluminar-nos a nós, que vemos a tela?

Carlos Dugos: (CD): Há sempre um combate, não em relação à luz propriamente dita, mas em relação à subjugação dos materiais, da própria matéria. A pintura repete um processo alquímico fundamental, o “Solve et Coagula”. Nós quando pintamos, idealizamos a tinta, que deixa de ser simples matéria bruta para passar a ser uma ideia e ao mesmo tempo materializamos a ideia. Esses dois aspectos dão-se num único movimento. Mas o que julgo se trata essencialmente na pintura é das gradações da luz através da cor. Relativamente à luz e à cor eu sigo um conceituado que é Goethiano. O que ele nos explica e até se pode verificar, é que a cor não é mais do que o diálogo ou a dialéctica entre a luz e as trevas. Ele até explica que há duas cores fundamentais, que são o azul e o vermelho. Os azuis correspondem às trevas, são uma família de trevas e o vermelho uma família da luz. Depois há os intermédios. Há o amarelo, que é comum aos dois e o verde que é uma cor central.

Luis de Matos (LM): Nesse caso a luz é sempre facturante entre as trevas e a ausência de trevas?

CD: Sem trevas não há luz. Porque se houver só luz, não se vê absolutamente nada.

LM: A luz em toda a sua intensidade também é invisível.

CD: É. Completamente. Tanto quanto as trevas.

LM: Precisamente. Portanto não é possível contemplar a luz directamente. Pelo menos a luz essencial.

CD: Não é possível apercebermo-nos de nada se tivermos só luz.

LM: Sim, porque não há formas. Não há onde ela reflicta.

AH: Faz lembrar o Ícaro, que quer encarar o sol de frente e acaba por morrer dele.

(…)

CD: O Goethe explicava que a luz quando é vista através das trevas a expressão é vermelha. E é verdade. Ao fim do dia, quando há trevas a oriente, a ocidente onde o sol se põe tudo é vermelho. Quando as trevas são vistas através da luz é o azul que impera. Nós temos o negrume absoluto do espaço, mas como temos uma atmosfera iluminada, vemos o céu azul, embora ele seja negro. Isso é muito interessante para compreendermos o comportamento de cada uma destas famílias de cores. A própria cor, pelo menos para mim, os próprios materiais, as tintas, os pincéis começam a ser entidades quase como se fossem pessoas. São personagens.

LM: Personagens?

CD: Sim.  Eu já prevejo o comportamento delas. Sei o que é que sai dali, se posso juntar isto com aquilo sem haver zaragata… É muito engraçado esse lidar com uma série de personagens que vivem no meu atlier.

AH: Um pouco da família do pintor também está ali à volta?

CD: Sim, sim.

AH: Posso fazer uma pergunta ao Carlos, porque eu tenho aqui alguma curiosidade acerca da simbólica? Há um momento na simbólica em que não é trevas nem é luz, que é o prolongamento do próprio homem, dos seres todos iluminados, seres imateriais até e inorgânicos, se quisermos, que é a sombra. A sombra tem aqui um momento de charneira, de passagem. Tanto que falámos há pouco dos gregos e os gregos tinham um inferno com as sombras, não exactamente com as trevas. Depois as trevas aparecem noutra grandiosidade. As sombras são muito importantes neste seu trabalho?

CD: Sim. Claro, claro. A questão da sombra é que a sombra necessita de um grande equilíbrio. A sombra tem que ser suficientemente equilibrada para para o discurso… É difícil explicar… [Equilibrada] para haver harmonia no discurso, porque senão deixa de ser sombra, passa a ser só escuro.

LM: Como a pausa na música? Será idêntico?

AH: É essa a própria simbólica. A sombra pode passar a escuro se deixar de ser iluminada. Se deixar de ser o homem no seu prolongamento.

CD: Sim… Isso aí é muito complicado. A questão da sombra, das pessoas e dos animais, a sombra que projectam é muito usada na magia operativa, sobretudo na magia negra e africana. A sombra da pessoa é muito importante. A manipulação da sombra da pessoa corresponderia, teoricamente – não sei se na prática – a efeitos na própria pessoa cuja sombra é manipulada. Essa percepção de que a sombra é um outro “eu”, que é a projecção do eu que cria uma intecepção à luz, é muito interessante.

(continua…)

Pérolas aos Poucos II – Halloween

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Episódio II – Halloween

(excerto)

Luis de Matos (LM): Esta noite do ano, a noite do Halloween, está ligada à aproximação desse mundo dos mortos ao mundo dos vivos. O mundo dos mortos em quase todas as culturas está afastado, não permeia o dos vivos. O mundo dos vivos é este e depois há um outro afastado e distante. Mas há um momento no ano em que ambos se tocam e esse momento é precisamente a passagem de 31 de Outubro para 1 de Novembro.

Alexandre Honrado (AH): Que é uma data com um significado e um significante, como eu costumo dizer. Tem um significado ritual, mas tem um significado também inerente. Todas as grandes datas aliás, as que nós comemoramos, têm um segredinho por trás.

LM: Sim. Todas as datas chamadas “mágicas” são momentos de ruptura, momentos de passagem de tempo. O ser humano tem dificuldade com as passagens, com as transições. A vida humana é cheia de transições, é cheia de incertezas, não é permanente. Podemos mesmo dizer que a vida humana é impermanência. E os momentos em que se dão todas as transições, especialmente as que estão ligadas ao calendário anual, requerem a cooperação do ser humano. É como se não acontecessem se o ser humano não cooperasse. É como se chegássemos a 31 de Dezembro e o ano não passasse se não o comemorássemos. O ano fica ali. Há ali uma finitude. Um fim. E o sagrado está sempre ligado a essa noção de corte. [É o caso da] noção de “templo”, por exemplo, cuja palavra vem do grego “temenos”, que significa “corte”. O “templum” em latim é o “lugar separado”. Portanto nada se pode fazer de sagrado se for no lugar comum onde tudo [o resto] se faz. Tem de ser [feito] num lugar em separado. E esta noção de corte é muito importante para que se dê o sagrado. Por exemplo, nós sabemos que as horas a que ocorrem os rituais têm de ser particulares. É a Missa do Galo à meia-noite, ou a Missa do meio-dia. Ou, lá está, a transição do ano à meia-noite. Ou, por exemplo, a hora a que certas Ordens começam a trabalhar, que é o meio-dia e a maia-noite, mas também a aurora e o crepúsculo, as 6h da manhã e as 6h da tarde. [Todas elas] são horas “mágicas”, horas onde tudo pode acontecer. Os rituais têm tendência a centrar-se nessas horas. Por exemplo, a situação [geográfica] de Portugal como sendo a ponta da Europa transforma Portugal num lugar mágico: “onde a terra acaba e o mar começa”.

AH: O Nascimento e o Ocaso?

LM: Exactamente. É aí onde se pode dar a magia. A magia não se dá nas horas vulgares, às 11 da manhã, às 10h30 depois de uma torrada e um café. A magia dá-se no lugar próprio, no tempo próprio. As histórias infantis, [que] são uma forma de transmitir essas coisas às gerações novas, se notares, colocam sempre a história, que é arquetípica e te dá valores para construir a sociedade no futuro, colocam-na sempre num desses espaços sagrados e tempos sagrados. Começam sempre: “Há muito, muito tempo, num lugar muito, muito distante”. Levam-te para um lugar que não é este onde estás e para um tempo sagrado.

(…)

AH: Tu falaste-me da influência Francesa. Quem tem uma influência Francesa muito grande é, sem dúvida nenhuma, o Haiti.

LM: Sem dúvida.

AH: Eu trouxe isto dos arredores de Port-au-Prince, que é, nada mais, nada menos, que uma figurinha de Voodoo. [mostra boneco de Voodoo]

LM: Pois, Port-au-Prince, a influência Francesa…

AH: Exactamente. Mas estamos a falar do Haiti. Não estamos a falar de Paris nem dos Champs Elysées… Estamos a falar de Port-au-Prince e estamos a falar desta criatura, que tem uma carga muito forte. É um boneco de Voodoo.

LM: Exactamente.

AH: Boneco que te empresto, mas com as devidas ressalvas, porque tem de voltar. Eu trouxe-o de lá, onde assisti a umas cerimónias bem curiosas. Dá-me vontade de usar esses alfinetes… Espetar algumas pessoas…

LM: (ri-se)

AH: Não espetes, não espetes… [Os alfinetes] estão a enfeitar o cabelinho dele. Não o espetes a ele. Espeta-o depois ritualmente e dizendo algumas palavras mágicas.

LM: Sabes que isto tem que ver com um tipo de magia que é a magia mimética. Há dois tipos essenciais: uma é a mimética e a outra é a de invocação. Na de invocação eu estaria aqui perante um templo ou um altar e invocaria uma determinada entidade a esse lugar através do traçado de figuras geométricas ou letras de determinados alfabetos para que essa entidade se manifestasse naquele lugar. Essa é a de invocação. Mas a mimética é aquela em que eu construo um modelo daquilo que quero influenciar. E aqui temos um caso desses. Este é o modelo da pessoa que se vai querer influenciar e aqui [(tomando um alfinete nas mãos)], temos o que estamos a infligir nessa pessoa. Na magia mimética aquilo que o mago faz é dizer “tal como eu tenho este objecto aqui” – vai tentar dar-lhe uma personalidade – “a pessoa que corresponde no mundo real a este objecto vai sofrer determinadas consequências”. Nem sempre são consequências negativas.

AH: Sim, nem sempre são negativas.

LM: Não. Na Igreja [Católica] por exemplo existe muito a noção da magia mimética quando fazemos uma evocação e dizemos “tal como Deus foi poderoso em Jericó e deitou abaixo as muralhas, também Ele é hoje aqui poderoso para…”, etc., etc.

AH: Na Igreja Católica.

LM: São fórmulas judaico-cristãs, mais judaicas [até], que usam a mesma noção da magia mimética que é reflectir uma situação em que esse poder se manifestou e, como tal hoje eu quero que ele se manifeste do mesmo modo.

AH: Mas há um mimetismo em todo o ritual. Quando tomas o cálice, quando bebes o sangue, quando comes um pedaço do corpo, é da alguma forma um mimetismo.

LM: Depende. No caso do cálice é diferente. Na realidade o sacerdote está a convocar sobre o cálice uma transmutação. E aí já não é uma magia mimética. Já nem sequer é uma magia… Supõe-se que há uma transmutação. A diferença entre transmutação e transformação é que quando eu transformo, mudo a forma, mas quando transmuto, mudo a essência.

(continua…)

Pérolas aos Poucos I – O que não se vê

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E assim foi o primeiro programa. Ligeiro e fácil. Pode seguir-se online clicando na imagem acima. Eis alguns momentos para os que ainda não viram:

Episódio I – O que não se vê

Alexandre Honrado (AH): A vida não é silenciosa.

Luis de Matos (LM): A vida não é silenciosa… Mas não precisamos de procurar esse silêncio de vez em quando? Quando é que podemos ouvir a nossa voz interior para…

AH: (interrompendo) Precisamos para compensação, mas nunca é completamente silenciosa.

LM: Eu ia mais longe, acho que precisamos [do silêncio] para nos ouvirmos a nós mesmos. Quantas vezes a nossa corrente de pensamento é condicionada pelo que é exterior? Por esse ruído… Não se expressa sozinha.

(…)

AH: O Kant falava de uma coisa extraordinária, nós e o nosso imperativo categórico. Aquilo que para nós é irrefutável e que nós nem percebemos porque é que em nós está tão definido. Essa voz interior não é esse imperativo? Não é qualquer coisa tão categórica que tu tens de escutar de vez em quando senão não te entendes e não consegues ir em frente?

LM: Pode ser categórica, mas também pode abrir caminhos subjectivos.

AH: Menos categórica?

LM: Menos categórica. Acho que é a voz que os poetas às vezes ouvem.  (…) A vivência do silêncio é importante porque damos valor à expressão.  Cada vez que vamos quebrar o silêncio tem que ser por algo que valha realmente a pena.

(…)

AH: Portanto estamos aqui no campo da abstracção. No da capacidade de criar, porque nós só conseguimos criar se nos conseguirmos abstrair do que está à volta. Estamos aqui num espaço imaterial.

LM: Na minha opinião não é possível criar sem… a criação é sempre objectiva, é sempre física, eu desenho uma linha e é “a linha”. Mas antes de ser linha podia ser tudo. Ela tem de ser, antes de mais, abstracção. Tem de ser todas as possibilidades das quais selecciono uma para plasmar no papel, para plasmar na obra ou numa escultura… ou no livro que escrevemos. Antes de começar a escrever um livro eu nunca sei como é que vai acabar. Eu nem sei como é que vai começar!

AH: Sim, sim! Não sentes que às vezes o livro te comanda?

LM: Ah! Quantas vezes!

AH: E que te diz: “é por aqui que eu quero ir, não vou por outro lado e vamos acabar assim os dois”?

LM: Mas esse é o prazer de escrever.

AH: Eu sinto isso.

LM: Eu tenho um prazer enorme quando tenho realmente um bocadinho de tempo (…), que me sento [e penso]: “onde é que isto me vai levar hoje”? E rio-me à gargalhada porque são coisas que eu nunca pensaria [por mim mesmo].

AH: E voltas atrás? Agora que já fizeste cem páginas, não tens necessidade de ver “onde é que este personagem começou?”, “o que é que ele me disse aqui atrás?”

LM: Sim, à vezes, porque eles se tornam incoerentes. Eu sou um bocado incoerente. Então eles tornam-se incoerentes. À medida que vão andando na história e que vão criando novas situações, eu não consigo limitá-los demasiado. Porque senão eram fórmulas, não é? E escrever com fórmulas, como por exemplo Dan Brown, em que as personagens são formuladas e etiquetadas do princípio ao fim, e não há uma variação…

AH: (interrompendo) Mas estás a escrever um livro, não está a escrever um “Dan Brown”, espero…

LM: Não, não. Enfim, tem os seus mistérios, tem as suas maçonarias pelo meio… Mas eu tenho necessidade que a personagem evolua. Não gosto de etiquetá-lo. Por isso tenho de voltar atrás.

AH: Tens essa ideia da linha do tempo, em que o personagem também evolui à medida que conta a sua própria história. Vai envelhecendo contigo dentro do livro, é isso?

LM: Às vezes vai maturando, mais do que envelhecendo. Porque vai pensando em coisas que não tinha pensado até ali que, claro, vêm da nossa experiência pessoal que podemos distribuir por várias personagens, ou da experiência do mundo que vemos à nossa volta. Podemos distribui-la pelas várias personagens. Eu às vezes fico um pouco atrapalhado porque noto que escrevi algo que me apercebi de amigos meus e não fui capaz em conversa…

AH: Roubaste-lhes algum alguma coisa que colocaste numa personagem de ficção…

LM: Sem querer. Sempre sem querer. E quando leio digo “mas isto parece quase aquilo que eu tenho em intuição sobre um amigo, mas que não lhe disse”. Então sinto-me muito culpado e peço para lhe ler. “Tenho de te ler uma coisa”. (ri-se)

AH: E depois aparece o teu amigo João e diz: “Este personagem chamado João, serei eu?”

LM: “Serei eu”?!

AH: “Não, não, isto é ficção!”

Ambos se riem.

(Continua…)