(excerto)
Luis de Matos (LM): Esta noite do ano, a noite do Halloween, está ligada à aproximação desse mundo dos mortos ao mundo dos vivos. O mundo dos mortos em quase todas as culturas está afastado, não permeia o dos vivos. O mundo dos vivos é este e depois há um outro afastado e distante. Mas há um momento no ano em que ambos se tocam e esse momento é precisamente a passagem de 31 de Outubro para 1 de Novembro.
Alexandre Honrado (AH): Que é uma data com um significado e um significante, como eu costumo dizer. Tem um significado ritual, mas tem um significado também inerente. Todas as grandes datas aliás, as que nós comemoramos, têm um segredinho por trás.
LM: Sim. Todas as datas chamadas “mágicas” são momentos de ruptura, momentos de passagem de tempo. O ser humano tem dificuldade com as passagens, com as transições. A vida humana é cheia de transições, é cheia de incertezas, não é permanente. Podemos mesmo dizer que a vida humana é impermanência. E os momentos em que se dão todas as transições, especialmente as que estão ligadas ao calendário anual, requerem a cooperação do ser humano. É como se não acontecessem se o ser humano não cooperasse. É como se chegássemos a 31 de Dezembro e o ano não passasse se não o comemorássemos. O ano fica ali. Há ali uma finitude. Um fim. E o sagrado está sempre ligado a essa noção de corte. [É o caso da] noção de “templo”, por exemplo, cuja palavra vem do grego “temenos”, que significa “corte”. O “templum” em latim é o “lugar separado”. Portanto nada se pode fazer de sagrado se for no lugar comum onde tudo [o resto] se faz. Tem de ser [feito] num lugar em separado. E esta noção de corte é muito importante para que se dê o sagrado. Por exemplo, nós sabemos que as horas a que ocorrem os rituais têm de ser particulares. É a Missa do Galo à meia-noite, ou a Missa do meio-dia. Ou, lá está, a transição do ano à meia-noite. Ou, por exemplo, a hora a que certas Ordens começam a trabalhar, que é o meio-dia e a maia-noite, mas também a aurora e o crepúsculo, as 6h da manhã e as 6h da tarde. [Todas elas] são horas “mágicas”, horas onde tudo pode acontecer. Os rituais têm tendência a centrar-se nessas horas. Por exemplo, a situação [geográfica] de Portugal como sendo a ponta da Europa transforma Portugal num lugar mágico: “onde a terra acaba e o mar começa”.
AH: O Nascimento e o Ocaso?
LM: Exactamente. É aí onde se pode dar a magia. A magia não se dá nas horas vulgares, às 11 da manhã, às 10h30 depois de uma torrada e um café. A magia dá-se no lugar próprio, no tempo próprio. As histórias infantis, [que] são uma forma de transmitir essas coisas às gerações novas, se notares, colocam sempre a história, que é arquetípica e te dá valores para construir a sociedade no futuro, colocam-na sempre num desses espaços sagrados e tempos sagrados. Começam sempre: “Há muito, muito tempo, num lugar muito, muito distante”. Levam-te para um lugar que não é este onde estás e para um tempo sagrado.
(…)
AH: Tu falaste-me da influência Francesa. Quem tem uma influência Francesa muito grande é, sem dúvida nenhuma, o Haiti.
LM: Sem dúvida.
AH: Eu trouxe isto dos arredores de Port-au-Prince, que é, nada mais, nada menos, que uma figurinha de Voodoo. [mostra boneco de Voodoo]
LM: Pois, Port-au-Prince, a influência Francesa…
AH: Exactamente. Mas estamos a falar do Haiti. Não estamos a falar de Paris nem dos Champs Elysées… Estamos a falar de Port-au-Prince e estamos a falar desta criatura, que tem uma carga muito forte. É um boneco de Voodoo.
LM: Exactamente.
AH: Boneco que te empresto, mas com as devidas ressalvas, porque tem de voltar. Eu trouxe-o de lá, onde assisti a umas cerimónias bem curiosas. Dá-me vontade de usar esses alfinetes… Espetar algumas pessoas…
LM: (ri-se)
AH: Não espetes, não espetes… [Os alfinetes] estão a enfeitar o cabelinho dele. Não o espetes a ele. Espeta-o depois ritualmente e dizendo algumas palavras mágicas.
LM: Sabes que isto tem que ver com um tipo de magia que é a magia mimética. Há dois tipos essenciais: uma é a mimética e a outra é a de invocação. Na de invocação eu estaria aqui perante um templo ou um altar e invocaria uma determinada entidade a esse lugar através do traçado de figuras geométricas ou letras de determinados alfabetos para que essa entidade se manifestasse naquele lugar. Essa é a de invocação. Mas a mimética é aquela em que eu construo um modelo daquilo que quero influenciar. E aqui temos um caso desses. Este é o modelo da pessoa que se vai querer influenciar e aqui [(tomando um alfinete nas mãos)], temos o que estamos a infligir nessa pessoa. Na magia mimética aquilo que o mago faz é dizer “tal como eu tenho este objecto aqui” – vai tentar dar-lhe uma personalidade – “a pessoa que corresponde no mundo real a este objecto vai sofrer determinadas consequências”. Nem sempre são consequências negativas.
AH: Sim, nem sempre são negativas.
LM: Não. Na Igreja [Católica] por exemplo existe muito a noção da magia mimética quando fazemos uma evocação e dizemos “tal como Deus foi poderoso em Jericó e deitou abaixo as muralhas, também Ele é hoje aqui poderoso para…”, etc., etc.
AH: Na Igreja Católica.
LM: São fórmulas judaico-cristãs, mais judaicas [até], que usam a mesma noção da magia mimética que é reflectir uma situação em que esse poder se manifestou e, como tal hoje eu quero que ele se manifeste do mesmo modo.
AH: Mas há um mimetismo em todo o ritual. Quando tomas o cálice, quando bebes o sangue, quando comes um pedaço do corpo, é da alguma forma um mimetismo.
LM: Depende. No caso do cálice é diferente. Na realidade o sacerdote está a convocar sobre o cálice uma transmutação. E aí já não é uma magia mimética. Já nem sequer é uma magia… Supõe-se que há uma transmutação. A diferença entre transmutação e transformação é que quando eu transformo, mudo a forma, mas quando transmuto, mudo a essência.
(continua…)